
Releitura e Memória
O filme A Princesa e o Sapo foi realizado a partir da releitura de contos infantis famosos. Entre eles, O Rei Sapo, dos Irmãos Grimm, e a adaptação do conto russo A Princesa Sapo, de E. D. Baker, conforme afirma o diretor Ron Clements.
Como toda releitura, a realização do filme por si só já evidencia a importância da memória: é a partir de algo do passado que ele será criado. Isso ocorre não para exautá-lo como um ideal a ser preservado, mas para que reflexões sobre ele permitam a compreensão do presente e a criação de algo novo. Essas reflexões, por vez sua, só são concretizadas quando compartilhadas - no caso, em formato de filme - e passam a ter um sentido comum, podendo ser transmitidas e, assim, desempenhar papel na formação de indivíduos.
De forma análoga, temos a importância da memória também para a compreensão do indivíduo na atualidade e as graves consequências que sua perda - ou desprezo - pode acarretar:
Com a perda da tradição, perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado; esse fio, porém, foi também a cadeia que aguilhou cada sucessiva geração a um aspecto predeterminado do passado. Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir. Mas não se pode negar que, sem uma tradição firmemente ancorada - e a perda dessa firmeza ocorreu muitos séculos atrás -, toda a dimensão do passado foi também posta em perigo. Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido - pondo inteiramente de parte os conteúdos que se poderiam perder - significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação. (ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa, p. 131)
No caso dos negros, que foram violentamente forçados a viver num mundo eurocêntrico que não preservava seus costumes, nem sequer lhes davam voz, esse olhar para o passado (e os devidos cuidados com ele) se fazem ainda mais fundamentais para o conhecimento e transmissão de suas raízes e tradições, salvando-as da ruína do tempo. Nesse sentido, um filme como A Princesa e o Sapo deve exercer um papel de grande importância para que se atinja uma descrição fiel e representativa dos personagens. Além disso, o filme também é um legado: como parte do domínio público, ele tem potencial para atuar como memória e desempenhar papel educativo, ou seja, pode servir como base para que se entenda e problematize a sociedade moderna hoje e no futuro.
Essa ideia pode ficar mais clara se aplicada ao cenário brasileiro atual: podemos pensar na aprovação da Lei 10.639/03 - que exige a inclusão da temática da História e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar. É inegável que o convívio e as relações estabelecidas entre negros e brancos exercem grande papel na construção de quem somos. Portanto, uma disciplina que finalmente traga à luz os costumes, tradições, produções e raízes dos negros se faz fundamental para a compreensão do nosso mundo - e, claro, para a problematização das disparidades sociais que ainda existem por conta de diferenças raciais. Além disso, através do ensino desse conteúdo, transmitimos um legado e cuidamos dele, na medida em que projetamos a continuidade desse ensino a futuras gerações, salvando-o do esquecimento.